"A escada para o Reino dos Céus está escondida em tua alma. Mergulha para dentro dos pecados que estão em ti mesmo e, assim, encontrarás ali uma escada pela qual poderás ascender" Isaac de Nínive.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Obs.: Abaixo, tradução do versículo bíblico para outras línguas:

"POR ISSO A ATRAIREI, CONDUZI-LA-EI AO DESERTO E FALAR-LHE-EI AO CORAÇÃO" Oséias 2,16
_____________________________________________________________________________________________________

Music Play

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A oração que brota do coração



A Oração de Jesus*





***



1. O CONTEXTO ECLESIAL  TEOLÓGICO/SACRAMENTAL:


Muito importante para compreender esta oração é situá-la em seu contexto teológico e eclesial: o hesicasta não está além da Igreja, ele se centra na Igreja, se faz integralmente um homem da Igreja, capaz de “fazer eucaristia em todas as coisas” como pedia o Apóstolo (I Tes 5,18). Que o hesicasmo constitui a contrapartida cristã do yoga que re-situa, numa atitude propriamente de reencontro pessoal e de graça, uma exploração da interioridade que também as espiritualidades asiáticas praticam, é mais que provável. E isto se deve à estrutura mesma do homem, criado à imagem de Deus.

Voltaremos a falar sobre isto. Porém, posto que só Cristo pode recapitular todas as coisas e colocar tudo em seu verdadeiro lugar, o hesicasmo aparece como fundamentalmente crístico, como uma ascese cujo fim é a tomada de consciência atuante da Igreja, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo e Casa do Pai...


A) É NECESSÁRIO, EM PRIMEIRO LUGAR, RECORDAR ALGUMAS APROXIMAÇÕES TEOLÓGICAS:

Quando, no Ocidente, pensamos na noção de natureza, o fazemos através de uma sensibilidade filosófica modelada pelo tomismo tardio, logo, pelo dualismo cartesiano, finalmente, pelas ciências contemporâneas que reabilitam - contra as ciências humanas - esse "paradigma perdido" a partir dos dados da biologia, da ecologia e da etología. Assim, cada vez, temos a impressão de que a graça vem juntar-se à natureza para contrariá-la ou aperfeiçoá-la... No Oriente cristão, me parece, a graça é sentida como presente em tudo o que existe. A verdadeira natureza dos seres e das coisas é justamente essa transparência à graça, esse dinamismo de união com as energias divinas. Pois, a graça é incriada, é Deus mesmo que se faz participável voluntariamente, permanecendo, ao mesmo tempo, o Totalmente Outro, o Inacessível.

Seguir a natureza, nesta perspectiva, é abrir-se à graça e unir-se a Deus: o homem não é verdadeiramente homem senão em Deus, não se pode falar do homem em seu próprio nível e, como dizia Berdiaev, empregando símbolos apocalípticos, não há, em geral, outra eleição que a "divino-humanidade" ou a "bestial-humanidade". O mundo caído, ainda que siga sendo criação de Deus, conhece uma modalidade noturna, ou, se se quer, demasiado clara, luciferina, no sentido do "palácio de cristal" de Dostoievsky. Certamente é mantido no ser pela Sabedoria divina, e a reflexão científica mais recente mostra até que ponto a ordem cósmica se recompõe sem cessar sobre a desordem, sobre o caos. Não obstante, esse mundo de opacidade, de crueldade e de morte, é parcialmente contra-natura: a verdadeira natureza, a descobrimos no corpo "pneumatizado" do Ressuscitado, do qual participamos na Eucaristia...

O homem foi criado à imagem de Deus, chamado a se transformar, na graça, imagem e semelhança, no sentido de uma participação. A imagem designa, em primeiro lugar, o homem enquanto vocacionado a uma existência pessoal em comunhão, a maneira da Uni-trindade e por transparência das energias trinitárias. Porém, designa também essa natureza profunda, inseparável do cosmo, não fruto, senão motor secreto do devir cósmico, e esta natureza é a aspiração ao infinito, a esperança da deificação, a imensa celebração da que a Índia diz com profundidade que dorme na pedra, sonha na planta, desperta no animal, faz-se, ou, melhor dizendo, pode se fazer consciente no homem. Todo o problema do homem radica em expressar justamente esse movimento para o infinito, unir o dinamismo interior do Sopro à revelação do Logos, de outro modo, esse impulso suscita as "paixões" e as idolatrias.


Se se tem presente o significado da noção de natureza, compreende-se que o ser humano, em sua totalidade, e até em sua estrutura e ritmos corporais, está constituído para chegar a ser templo do Espírito (a expressão é paulina, como se sabe). Temos feito do cristianismo um assunto da alma, um assunto psicológico (e finalmente, uma ideologia...). Porém, na Tradição da Igreja indivisa se encontra a idéia muito forte de que o homem é criado para estar unido a Deus em todo o seu ser, espírito, alma e corpo; não se considerando aqui o espírito como uma faculdade particular, mas como o centro donde todas as faculdades se unem, donde o homem, todo inteiro, se unifica e se supera. Em suma, a inscrição em toda a natureza do homem, de sua vocação em pessoa. Um ocidental, marcado por uma espécie de platonismo inconsciente, tem tendência a aproximar o Espírito ao espírito, depreciando o corpo. Na realidade, o Deus vivente transcende também radicalmente, tanto o inteligível como o sensível, e quando se dá, transfigura tanto um como outro. A antropologia do hesicasmo é bíblica, isto é, unitária. Acentua os dois ritmos fundamentais de nossa existência psicossomática, o da respiração e o do coração. O ritmo respiratório é o único que podemos utilizar voluntariamente, não para dominá-lo senão para oferecê-lo; ele determina nossa temporalidade vivida, a acelera ou a acalma, fecha-se sobre si mesma ou a abre sobre a Presença. 

O ritmo do coração ordena o espaço-tempo ao redor de um centro do que todas as tradições espirituais sabem que é abismal, que pode abrir-se sobre a transcendência; é a "caverna do coração" das tradições arcaicas e da Índia... Esses dois ritmos nos tem sido dados pelo Criador para permitir à vida divina apoderar-se da profundeza de nosso ser e envolvê-lo, encher de luz toda nossa existência. Poderia-se quase dizer, não somente nossa existência corporal mas, a partir de nossa existência corporal, pois é no Corpo de Cristo que somos enxertados pelo batismo; é pelo sangue (con-sangüíneos) e pelo corpo (con-corporais) que somos unidos a Cristo: certamente, o Corpo de Cristo designa sua humanidade inteira, porém a língua não se equivoca, é o corpo o que constitui a raiz e a expressão ultima da encarnação. É necessário tomar a sério a exortação: "Não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que habita em vós? Glorificai a Deus em vosso corpo" (1Cor 6,19-20).

Uma certa poesia nos guia aqui, não para o imaginário, senão para a profundidade, para o simbolismo verdadeiro que se inscreve na natureza das coisas que o Logos ordena e que o Pneuma vivifica.

“O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou em suas narinas um sopro de vida e o homem se converteu em um ser vivente” (Gn 2,7).

Assim se precisa uma correspondência, uma analogia-participação entre o Espírito, enquanto sopro vivificante de Deus, e a respiração enquanto sopro vital do homem. O homem é chamado a mesclar seu sopro ao Sopro divino, a "respirar o Espírto Santo", como escreveu Gregório o Sinaíta. É o que ele alcança se consegue "aderir" à sua respiração o Nome de Jesus, pois o Espírito, tanto em Deus como no homem, é o "anunciador do Verbo".Existe igualmente uma analogia semelhante entre o coração, como centr de integração do homem, e Cristo, "sol de justiça", coração da Igreja e, por seu intermédio, do Universo, posto que a Igreja não é outra coisa que o Universo em vias de transfiguração ao redor de seu coração. Este tema de Cristo-coração, coração da Igreja e de cada um de seus membros, é fundamental para um espiritual e liturgista leigo do final da Idade Media, Nicolás Cabasillas, que escrevia para os leigos e dava à tradição hesicasta uma tonalidade diretamente sacramental.

Com efeito, o tema do coração está ligado ao do sangue. Quando o homem arcaico e, por outro lado, o homem bíblico, medita sobre o sangue, o vê líquido como a água mas, vermelho e quente como o fogo. O sangue é, de algum modo, a água "pneumatizada", portadora do mistério da vida e que só pertence a Deus. As águas simbolizam a vibração original do criado sob o sopro que suscita a vida. Na origem, o Espírito repousa sobre as águas, as incuba, torna-as dóceis às exortações do verbo. E, certamente, em nós e ao redor de nós, o pecado endurece o ser criado, o faz insensível ao Espírito. Só o sangue que brota do lado, do coração do crucificado pode sacramentar de novo a terra. Só o sangue eucarístico pode ascender novamente o fogo do Espírito em nosso sangue, em nosso coração, desde que a existência em nós perca sua dureza, que o coração de pedra se dissolva nas águas novamente originais, matriciais, do batismo e das lágrimas.

Através destes símbolos que se correspondem, se pode apreciar como se entrelaçam o sopro humano e o sopro divino, a graça batismal, o sangue e o coração. Tudo isto conduz à idéia de uma inteligência que não é somente cerebral, inteligência da cabeça e da racionalidade caída - que opõe ou confunde - e também à idéia de um "sentir", de uma sensação que não é só do coração orgânico ou das entranhas. Por conseguinte, a idéia de uma inteligência do coração espiritual (que não coincide totalmente com o coração físico, mas se encontra um pouco mais além) e de uma sensação do coração espiritual. Como se o coração tivesse se unido, metamorfoseado no crisol da graça, a cabeça e as entranhas, por um conhecimento de fé e de amor, por uma "sensação de Deus" donde o homem íntegro se sobrepassa, se equilibra e se abrasa.

A Bíblia fala sem cessar desse "coração-espírito", desse coração inteligente. O Evangelho diz: "Amarás a Deus com todo o teu coração"; numa redação mais tardia, adaptada à mentalidade helênica, teve tornar mais preciso: "com todo o todo o teu coração e com toda a tua inteligência". Porém, biblicamente falando, "com todo o teu coração" é suficiente, pois, dizer "com todo teu coração" é dizer "com toda a inteligência".

O fundamento destas analogias é a criação do homem à imagem de Deus, o que explica que estejam presentes, ao menos de forma parcial, na maioria das tradições espirituais da humanidade. Porém, a Criação não é realmente restaurada, ou melhor, realmente instaurada, senão em Cristo, e é por isto que todas estas analogias encontram n’Ele sua origem e seu cumprimento. É Ele quem fez da humanidade, o Tempo do Espírito, seu sopro é o "principio de vida"; sua carne e seu sangue, assumindo no pão e no vinho todo o Cosmos e toda a História Humana, são o único alimento de eternidade.


B) A ORAÇÃO DE JESUS, POR OUTRO LADO, ESTÁ LIGADA AO MISTÉRIO DO NOME:

O tema do nome se re-encontra por todas as partes na história das religiões, como na celebração poética ou ritual, das amizades ou dos amores humanos. O nome tem sido sempre sentido como a expressão da Presença. Nas religiões arcaicas, das que a magia está muitas vezes próxima, conhecer o nome de Deus é dominar seu poder (porém, Deus não é mais que a aparência de uma divindade impessoal). Na Bíblia a mudança é surpreendente: não se trata de dominar o poder de Deus, o Deus vivente toma uma distancia fulminante, até mesmo, inacessível. A invocação do Nome se faz excepcional e terrorífica. O tetragrama era pronunciado só uma vez por ano, no dia de Yom Kippour, quando o grande sacerdote entrava no "santo dos santos". E, inclusive, esta nomeação se perdeu, foi (voluntariamente?) esquecida. Diz-se ADONAI, o Senhor; ou Elohim, o plural que designa o "salto fora de si" do inacessível. Nas religiões da transcendência pura, Judaísmo e Islamismo, não se pretende conhecer o Nome; sabe-se somente que Deus estabeleceu soberanamente certos tipos de relações com o homem e que, dada uma delas, pode ser evocado por um nome relativo por definição (não há então o Nome, senão os nomes: no Islã somam 99).

Jesus nos revela o Nome próprio de Deus e é um Nome expropriado. Deus sai de sua transcendência inacessível e se revela a nós sobre a Cruz. É nesta "kenosis" inimaginável, nesta expropriação total, que nos revela seu próprio nome. Jesus, nome não muito comum no Antigo Israel, significa "Deus Salva", "Deus Liberta". Porém, é só depois do Getsêmani e do Gólgota, depois da descida de Cristo à morte e ao inferno que sabemos que somos salvos e libertos.

O paradoxo do Inacessível e do Crucificado, esta grande antinomia, nos permite balbuciar, muito além de todo sentimentalismo, a equação de João: "Deus é amor". Nós não invocamos o Nome como os povos antigos que queriam dominar um poder: oferecemos a uma presença infinitamente participável, porém simultaneamente inacessível.

Já não invocamos o Nome no temor e no tremor, como o fazem o Judaísmo e o Islam, para os quais trata-se sobretudo de um desses nomes que constituem algo assim como o "reverso" misterioso do Transcendente. Deus para nós, voltou ao coração de sua Criação pelo Sim de uma mulher e, consumindo o fogo, vem a nós, "doce e humilde de coração" na presença de Jesus, no sopro ligeiro do Espírito, no balbuciar infantil, tão familiar e confiável: "Abba" - Pai; no Pão e no Vinho compartilhados à Eucaristia.

É por isso que, contrariamente ao que se pensa, muitas vezes, o Nome próprio de Deus, o Nome expropriado do Amor, não me parece que se limite somente à invocação de Jesus. Ele se desdobra na fórmula íntegra: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", tratando-se de uma fórmula trinitária.

A "Oração de Jesus", tal como se estereotipou nos séculos XIII e XIV, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim", lembra o chamado do publicano e do cego do Evangelho. Porém, trata-se de uma invocação trinitária. Invocamos a Jesus, o chamamos Cristo e Senhor, por conseguinte, confessamos sua divindade. Entretanto, "ninguém pode dizer que Jesus é Senhor senão no Espírito Santo" (I Cor 12,3). Dizer que Ele é Cristo, é recordar que o Espírito repousa sobre Ele, n'Ele, pois o Espírito é, desde a eternidade, a "unção do Filho", como assinalava São Gregório de Nissa. Invoquemos então, no Espírito, e designemos ao Espírito mesmo designado a unção que faz de Jesus o Cristo. Finalmente, digamos d'Este que é "Filho de Deus". E Deus, nesta fórmula, como em todo o cristianismo antigo, é o Pai, "Fonte" da divindade e "princípio" do Filho e do Espírito. Dizer "Jesus Cristo Filho de Deus", é entrar no mistério da "patri-filiação", é nomear o Pai.

A "Oração de Jesus" – e este é o ultimo elemento de seu contexto, do que me parece essencial falar – se situa numa perspectiva sacramental. Tem por finalidade uma tomada de consciência da graça batismal; é um reencontro pessoal com Cristo que é, ao mesmo tempo, uma "Vida em Cristo, uma "respiração do Espírito" (posto que o corpo sacramental de Cristo é um Corpo "pneumático", um lugar pentecostal), uma atualização da energia trinitária que, para um cristão, não é jamais impessoal, mas que se realiza no Espírito, por Cristo ao Pai.

O Batismo, e, por conseguinte, o Crisma, que no Oriente cristão é inseparável, acentua o aspecto carismático; o batismo é a grande iniciação cristã, submersão nas águas da morte, descida ao inferno com Cristo e subida com Ele e n'Ele; ressurreição em Cristo, possibilidade de metamorfosear a angústia da morte em júbilo no Espírito. De modo que, o batizado leva dali em diante em seu inconsciente, não só os traços de seu destino individual ou coletivo, mas o próprio Deus (o que, a sua maneira, descobrem os "psicanalistas da existência").

Dali em diante, uma certa exterioridade ou impessoalidade de Deus é superada, exterioridade das religiões da transcendência fechada, onde a fé permanece sendo de ordem ética; impessoalidade dos orientes distantes, onde a imersão no divino dissolve o homem.
Mediante o Batismo, o Deus Vivente, o Inacessível, se torna plenamente participável na "profundidade" do coração.

São João Crisóstomo afirma que um adulto, recebendo o Batismo, percebe fugazmente uma real iluminação; porém, que esta se oculta em seguida no inconsciente. É necessário então trabalhar, e este é todo o sentido da ascese, para tornar-nos conscientes desta Presença que ocupa o fundo de nosso ser. Além disso, existe a santidade em nossa própria existência corporal, enxertada pelo batismo no Corpo do "Único Santo"; existe a santidade em nosso corpo "com-corporal" ao seu, em nosso sangue penetrado pela incandescência eucarística. É nossa alma ou mais precisamente, nossa consciência a que se adultera e se prostitui; é ela que precisa voltar a estar atenta ao mistério presente no "coração".

A "Oração de Jesus" tem por finalidade "circunscrever o incorporal no corporal", reconstruir a unidade estática do "coração consciente". Tomar consciência da graça do Batismo não se separa, por conseguinte, da tomada de consciência da plenitude eucarística. Viver em Cristo é tornar-se um homem eucarístico, é despertar-se para a grande alegria da Eucaristia que é também uma alegria pentecostal, uma vez cada vez que, cada vez que celebramos a Eucaristia entramos num Pentecostes que não terminará jamais, que antecipa a Parusia, e que sobrevirá com toda sua força no momento da Parusia: "Vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste", cantam os que comungaram. A finalidade da "Oração de Jesus" é nos ajudar a estabilizar, a elucidar, a interiorizar esta visão da verdadeira Luz, esta recepção do Espírito. A invocação do Nome de Jesus deve chegar a ser uma "epíclesis" cada vez mais permanente.

O "coração consciente" é, deste modo, um coração eclesial. É, por sua vez, a unificação do homem e a tomada de consciência da consubstancialidade, em Cristo, de todos os homens.
Por isso, os carismas que recebem, as vezes, os espirituais - de cura, de profecia, de clarividência, de discernimento dos espíritos, de paternidade espiritual - são ordenados para a "edificação" da Igreja. Ainda que permaneça só e anônimo até o fim de sua vida, o espiritual, só pela sua simples presença, é uma fonte de bênçãos para a Igreja, para a humanidade e para o Universo. Tudo é envolvido em sua oração. É o sal da terra e a luz do mundo, ele que, com o apóstolo, não busca mais que ser a escória deste mundo.

A esta tomada de consciência da graça sacramental se une, de modo inseparável, uma leitura adoradora e, como sacramental ela também, da Palavra de Deus. É o que o monaquismo ocidental denomina a "Lectio Divina" - uma incorporação quase eucarística do sentido espiritual. Uma leitura semelhante permite, logo, levar em si uma frase ou uma palavra, como um gérmen de vida, como um perfume que enobrece a alma durante horas.

Deixa-se levar pela leitura dos Salmos, porém se repentinamente uma frase, uma expressão, toca o coração, é necessário guardar em si, preciosamente, este toque de transcendência: "Teu amor me feriu, marcho cantado-te", dizia São João Clímaco.

Entre as histórias do deserto, se encontra aquela do homem que encontrou um abba (pai espiritual) e lhe perguntou como se devia orar. "É necessário recitar os salmos", respondeu o monge. Como não sabia nenhum, o monge lhe ensinou o primeiro versículo do Primeiro Salmo: "Feliz o homem que não marcha segundo o conselho dos ímpios". E acrescentou: "Vê, medita estas palavras, volte logo te ensinarei a continuação". O homem partiu e o monge não o voltou a ver. Durante muitos anos sua meditação se alimentou daquelas palavras e por causa delas se converteu em um santo...

A Bíblia e a Filocalia são inseparáveis. O autor dos Relatos de um Peregrino Russo, conta que só levava estes dois livros em seu alforje. "O Evangelho é como a oração de Jesus", escreveu, "pois, o Nome divino encerra em si todas as verdades evangélicas". Quando comecei a compreender melhor a Bíblia, graças a Filocalia, encontrei cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios encerrados na Escritura. É a hermenêutica da oração a que mais temos necessidade nos dias de hoje "Comecei a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus", acrescenta o Peregrino, "Descobri o que significam expressões como: "o homem interior do coração", "a oração verdadeira", "a adoração em espírito", "o Reino em nosso interior" e "a intercessão do Espírito". Compreendi o sentido destas palavras: "Vós estais em mim", "estar revestidos de Cristo" e muitas outras.

Compreende-se que o Oriente cristão chamou "graphai", escrituras, indistintamente, à Bíblia, aos seus comentários litúrgicos e aos seus comentários místicos; e que também certos espirituais da Tradição pudessem afirmar que a destruição material da Bíblia não teria para eles nenhuma importância, não só porque já sabiam de memória, mas porque já havia penetrado em seu coração. No limite, o coração virgem do santo "iletrado" (agrammatos) se converte em página branca na qual Deus escreve diretamente, com caracteres de fogo o seu Verbo.




______________________________________________

*Conferência realizada por Olivier Clèment, teólogo ortodoxo, aos monges da Abadia de Tamie (Saboya) em 29 de maio de 1970. Tradução de Pe. Paulo Augusto Tamanini, extraída do site Ecclesia.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

# Pesquisar neste blog: